Em seu Filosofia da Idade Média, ao discorrer sobre o eterno problema do entendimento de real e da compreensão da realidade comunicada, Etiene Gilson expressa uma interessante metáfora daqueles tempos, muito análoga à da famosa Caverna de Platão. Em vez de uma caverna, a arca de Noé. Em vez da terra lá fora embebida da Luz do sol, o mar de águas a circundar a nave solitária, em meio a torrente do grande dilúvio. Pensando no ardor missionário dos doutores da Igreja, a metáfora cai muito bem com outro ditado, genuinamente medieval: esses grandes sábios somente o são porque estão numa posição altaneira, de melhor visão das coisas, a posição “de anões sentados nos ombros de gigantes” como Platão, Aristóteles, Cícero, Boécio, Orígenes e muitos outros. Entrementes, em se tratando de doutores de uma Igreja, sacrossanta, porque fundada pelo Autor da vida, naturalmente a visão das visões é que deve permear o realismo de ontem, de hoje e de sempre. Como tamanha pretensão vai ser melhor comunicada, é assunto para toda uma apologética, que passa pelo magistério e a doutrina da igreja católica apostólica romana. Como diz alhures Sidnei Silveira, a aventura da busca do ser que repousa na ventura da praxis dos entes durante toda a história da Igraja Católica.
Nesse ínterim, cada Doutor soube como ninguém em sua época abordar os desafios que lhes foram lançados, assumir o comando de sua nau e partir para mares nunca dantes navegados; e, encontrando a terra firme que Deus lhes permitiu alcançar, doravante poder influir nos próprios modelos de magistério e apostolado, culto ou popular.
O mestre dialético, promotor maior da querela dos universais, foi interpelado pelo doutor melífluo, são Bernardo, que o corrigiu no que poderia corrigir, teologicamente, mas não corrigiu no que não lhes cabia, por pura e simples incompetência, por sua incapacidade de compreender os avanços da pedagogia dialético-filosófica em curso. Como convém a todo santo, teve a humildade de assim se reconhecer! … vejamos o que ocorreu pouco antes e pouco depois, antes de nos aventurarmos no princípio crucial da questão e no seu status questioni atual. Pouco antes, séc. XI, Santo Anselmo, o doutor magnífico, assim merece ser adjetivado por seu brilhantismo no desenvolvimento de uma idioma dialético talvez dos mais próximos possíveis de se alcançar em assuntos teológicos. Desafiado por monges alunos seus, elaborou criteriosamente argumentos ontológicos ao modo lógico-analítico visando a demosntração da existência de Deus…. pouco depois, santo Tomas de Aquino, o doutor angélico, séc. XIII, ouvindo muito santo Agostinho, o doutor gracioso, e demais agostinianos e neoplatônicos, de Aristóteles arquitetou a mais grandiosa das sumas. Análise e Síntese de universais apareciam finalmente numa única construção pessoal e doutrinal. Mas, doravante, foi o início da derrocada da Escolástica!
Segundo Gilson, o fim do séc. XII deve a Abelardo “o gosto pelo rigor técnico e a explicação exaustiva, inclusive em teologia, que encontrará sua expressão completa nas sínteses doutrinais no século seguinte. Abelardo como que impôs um padrão intelectual abaixo do qual não se aceitará mais decer” (p. 352). Verdade, doravante, teremos a corrida pela ars domontratio, a arte de compor postulados, princípios e axiomas numa única nau, e hastear todas as velas possíveis e imagináveis para driblar terras áridas e rochas perigosas no percurso, navegando nos mares tranquilos das investigações patrísticas e escolásticas, místicas e racionais. Antecipando um pouco ainda menos e um pouco ainda mais, temos os ventos de mística e racionalidade dos “anões” das artes liberais, em Escoto Erígena, no séc. X e em Raimundo Lúllio, no início do séc. XIV, intermediada pelo trívio e quadrívio scholar em Hugo de São Victor, no séc. XII. Efetivamente, Lullio, o doutor iluminado, parece ter sido, junto com Duns Scott, o doutor sutil, a última virtuosidade cristã a navegar nos últimos decênios dos mil anos de porto seguro do reinado potifício.
Mais que um rochedo, um iceberg mais perigoso do que o do Titanic surgia imperceptível no horizonte: o nominalismo. Abelardo soube driblar o flactu voices de uma filosofia pautada em efeitos post REM (consequencialismo) e conciliou a generalidade do universais com a epecificidades do particular. Já Lúllio teve que trocar pneu com o carro andando, soprar a vela da nova lógica e ainda pilotar a sã doutrina aos incautos. A novíssima lógica proposicional de Frege (séc. XIX) vai querer resolver tudo na pancada, separando a lógica analítica e “autêntica” de primeira ordem com as demais “assessórias”, de cunho formal e simbólico. Mas, segundo Haack (séc. XX), o papel anterior da lógica instrumental, chamada logica utens servia, desde Aristóteles, de meio para expressar a realidade in RE, objetiva, por meio de linguagens apropriadas ao interlocutor, do sagrado ou do profano, por meio da logica docens, a lógica da livre docência. Agora sim, temos a perspectiva venturosa da arte de inovar e combinar símbolos da Gramática com o rigor dedutivo da Lógica. Arte desenvolvida com maestria por Santo Tomas de Aquino em todos os graus dos saberes (Maritain), ontológicos, epistêmicos e praxiológicos. Por exemplo? Na praxis da psicologia, aplicável em todos os tempos…. Por menos que isso Aquino foi considerado, e é, com justiça, Doctor Humanitas.
Infelizmente a sombra da Peste Negra se aproximava, o radicalismo dos averroístas de um lado, e o justo empirismo nascente de outro (Alberto Magno, Roger Bacon, etc.) levaram à separação do Mundo dos espíritos do Mundo da experiência prática e a nascente corrente humanista perdeu de vez o senso de unidade entre corpo e alma propiciado pelo realismo moderado dos universais. A psicologia subjacente a entes antropologicamente situados teve que esperar muitos séculos mais, a escolástica foi perdendo seu senso de ética moral e prudencial nos novos arranjos urbanos e geopolíticos, e a educação utilitária, menos liberal, ganhou poder nos estados-nações e nas Uiversidades a eles subjugadas. As luzes do Cosmo, fonte de ordem de todos gerais em relação às partes particulares (cosmos significa ordem no todo), deu lugar a leis cartesianas abstratas ordenando movimentos de canhões habilmente manejáveis, o astrolábio dos navios oceânicos e as caldeiras de carvão de fábricas de tijolos e trens de locomoção. A prudência virou temeridade e a audácia, na arte dos aventureiros políticos e ideológicos, a promessa de prêmios paradisíacos aos que apostam nas revoluções, em ambientes propícios onde reina o caos civilizatório. Mestres e doutores de almas contemplativas sedentas de verdade foram substituidos por instrutores de mão de obra servil — um sujeito passivo do poder e do ocaso.
O conceito de verdade, no entanto, não é nem randômico nem determinístico, é atemporal, como convém, entre outros tantos, aos conceitos metafísicos de potência e ato, conclui MacIntyre. Nem está na mente nem de todo inacessível nas coisas in RE. A continuidade de atos morais, por serem teleológicos, dependem de elementos externos aos desejos e rejeições dos sentimentos humanos e as melhores crenças verdadeiras justificadas são aquelas que condizem com a estrutura da realidade sobrenatural, universal, na economia participativa do ser.