Murilo Veras

Murilo Veras

Eng. Agro., MSc, Filosofia (esp)

Tecendo a Memória de sentido: ordo amoris.

Em nosso projeto editorial, da Devenir Editora, primamos pelo zelo à Memória do passado, de nossas tradições. Felizmente já temos muitas editoras zelosas nesse sentido. Muitas boas obras publicadas nos últimos anos sabem valorar o passado e a tradição católica. 

Lembro agora algo disso em Tecendo Fio de Ouro (Editora Shalom, 2013), referindo-se a Santo Agostinho:

Três tempos estão na mente a não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presento do presente é a visão. O presente do futuro é a espera

Assim, segundo Frankl, como nem o presente nem o futuro existem apartados de um passado tornado atual pela memória habitada em nosso interior, o passado é a experiência mais concreta que o homem possui. A obra, composta por duas cearenses da Comunidade Shalom (uma delas especialista em logoterapia), se inicia com as metáforas do rio de água viva em Genesis e Ezequiel (47, 1-12), em que a fonte pura como ouro de Ofir pode ser inferida das árvores à margem de uma de suas quatro afluentes, todas correndo em sentido ao Oriente, até, de alguma forma, desembocarem na microbacia do Jordão. 

Em termos geográficos (e hidrográficos), não se tem conhecimento dos dois afluentes que talvez antecedam aos das Bacias de Tigre e Eufrates, e de todo modo, há que se relevar que apenas Eufrates permanece sendo relembrado por todo o AT, sendo citado mais de uma dezena de vezes. O importante é a mensagem concreta para o homem pecador, fazendo-o entender o sentido das correntes, ora mansa, ora turbulenta, e os perigos de certas acomodações que nos fazem repousar em charcos e pântanos, desobedecendo ao chamado das correntes “oxigenadas” desde a fonte que devem seguir um rumo piscoso, rico em quantidade e variedade de peixes (nossa vocações?!), seguindo seu rumo à beleza os refrescos do mar do Jordão, cujas margens não se deixam secar, e as árvores nunca murcham. Então produzem frutos saudáveis e folhas medicinais em abundância.

Na arte da piscicultura e da fruticultura temos um pouco das quatro artes do quadrivium. Trabalha-se com afinco para adubar o fundo dos tanques de crescimento dos peixes e para manter a oxigenação de águas mais paradas. Poucos tipos de peixes normalmente ali se desenvolvem a contento, suas margens são preservadas por uma vegetação mais rasteira. Os rios mais piscosos são os que tem mais vazão e certa correnteza ligeira, cuja monotonia é quebrada por desníveis do leito e por pedras e rochas inquebrantáveis. Nessa dinâmica água, terra, fogo e ar se intercambiam para fornecer umidade, secura, frieza, calidez e aquecimento de cima e de baixo. A calidez do sol nascente, vinda do oriente, por exemplo, é propícia para o florescimento de muitas espécies frutíferas no verão quente ou para evitar geadas naquelas mais sensíveis ao frio excessivo no inverno (quando o degelo deve ser mais lento para não queimar suas folhas). Mas é a força energética da fotossíntese que em tudo vai garantir o processamento das duas dúzias de elementos necessários, sobretudo a superabundância necessária de carboidratos (CHON — carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio). Segundo Raimundo Lúllio aqueles quatro grandes elementos se intercambiam pelo que hoje entendemos por antagonismo competitivo e sinergismos simbióticos. As águas oriundas das margens retornam ao solo como que purificadas pelo solo mais arenosos das margens do rio ou por lençóis freáticos que vão mais adiante abastecer os solos mais argilosos, e potencialmente mais produtivos de fruteiras perenes, cultivadas ou não, enquanto as frutas silvestres permanecem nas várzeas sedimentadas ao longo das margens, formando uma enorme rede de corredores da “mata de galeria”.

Já a arte do trivium consiste em saber dar significado dos elementos da natureza e ir tão mais além do que imaginários mais simples de passado ou presente operacional quanto possível à mente racional em suas “lógicas” de primeira ordem (formalistas e normativas). Na alma pecadora, a visão presente das riquezas da natureza infelizmente pode encobrir as lições morais da natureza humana os sentidos de orientação unidirecional ao bem e ao verdadeiro. Nos ritos mais antigos e tradicionais da Igreja, o ofertório da eucaristia era feito em direção ao Oriente. Ninguém precisa se apegar legal e ritualmente, stricto sensu, a procedimentos litúrgicos como este e, por exemplo, o de expressar a íntegra das Revelações em latim. Importa que se entenda antes os significados das expressões simbólicas revestidas de realidade concreta advindas de passados mais recentes, de nossos ancestrais nacionais e mesmo familiares. Nas sagradas escrituras a ancestralidade remete até mesmo à cosmogênese e a relação triádica de significação existencial e ontológica da eternidade, do homem e do Deus criador. Na linguagem, matas de galeria dos vernáculos europeus latinos remetem a poucas fontes de origem, como o grego, a indo-européia e o hebraico antigo. Se as línguas mais elaboradas ao oeste da Europa produzem abundantes riquezas de Retórica e Dialética à margem da Gramática, seus feitores devem sobremaneira humildade de reconhecerem as areias dos fonemas e símbolos como filtros fundamentais. São os abusos da linguagem que levaram ao nominalismo, ao gnosticismo e aos cientificismo modernos.

A logoteraia de Frankl segue o Sentido. Os mistérios da realidade concreta não são depuráveis por uma lógica “menor”, racionalizante, por traz da depuração hermenêutica se esconde o ouro da sabedoria. Para os escolásticos “tardios”, apesar das confusões nominalistas, há uma lógica maior e intercambiável, como no de Lúllio, o Doutro Iluminado, em princípios inegociáveis como Criação, Eternidade, Encarnação e Eternidade. Entre as margens do Rio Vermelho e do Véu rasgado no Templo, existem abismos paradigmáticos, cursos irreversíveis, entre o velho e novo Mundo.

Nunca saberemos que dois rios “menores” eram aqueles, talvez simples bacias menores a norte do Iraque de hoje, acho que não; de toda forma costumam ser regiões montanhosas recheadas de pedras a cachoeiras mais ou menos íngremes. A ousadia de enfrentar as cachoeiras do mundo nunca são mais perigosas do que nossa capacidade, com a graça de Deus. Os jesuítas podem ter tropeçado em alguns desvios da Tradição scholar, mas nos deixaram o excelente legado de orto studiorum. Todo Magistério nos legou a Gramática maior do Evangelho, enfim o vetor maior da caridade, ordo amoris.

Deixemos as grandes travessias da História para homens como Abraão, Moises, Cesar, Napoleão, ou mesmo os mais imprudentes, como dum Solano Lopes, a invadir a Bacia do Prata na Guerra do Paraguai. Carregar pequenas cruzes costuma ser suficiente, deixando as grandes travessias para os bons hábitos mentais, educacionais e espirituais. 

Na margem de lá, depois de navegar em águas profundas, encontraremos a Memória das memórias, o Logos, o sentido de orto ordo amoris.  

Comentário sobre o julgamento de Cristo

Sobre a cruz, as três inscrições de Jesus Cristo, rei dos judeus, em grego, latim e hebraico. O título de Rei negado pelos judeus, foi mantido por aquele que declarara: meu reino não é deste mundo. Seu Reino não vem nem do oriente nem do ocidente, muito menos do jogo deplorável da política e do poder temporal. Vem de cima. Depois do ceticismo brutal para com a Verdade de Pilatos Jesus responde ao arrogante interrogador: tu o dizes. A verdade não se revela aos poderosos e a autoridade que detêm não vem de suas façanhas e bravatas mas de Deus, em cumprimento de seus desígnios. A água e o sangue derramado, o véu rasgado no Templo, demonstram a ruptura de um “paradigma” caduco, amparado em leis prosaicas e normas de obediência ao poderio dos romanos. Essa cachoeira de Niágara mudou os rumos e o Destino da humanidade vai ter que se curvar em águas e fogo forjado rumo ao Apocalipse. Nesse ínterim, o poder será dados aos mansos e humildes. O futuro triunfante pertence aos que esperam na Eternidade.

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