Murilo Veras

Murilo Veras

Eng. Agro., MSc, Filosofia (esp)

OS HOMENS SE ESQUECERAM DE DEUS – by Solzhenitsyn

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OS HOMENS SE ESQUECERAM DE DEUS

Discurso de aceitação do prêmio Templeton[1] (Aleksandr Solzhenitsyn, 10 de maio de 1983).


Há mais de meio século, quando eu ainda era criança, lembro-me de ouvir várias pessoas mais velhas darem a seguinte explicação para os grandes desastres que se abateram sobre a Rússia: “Os homens se esqueceram de Deus; é por isso que todas essas coisas aconteceram”.

Desde então, passei quase 50 anos trabalhando na história de nossa revolução; no processo, li centenas de livros, coletei centenas de testemunhos pessoais e já contribuí com oito volumes de minha autoria no esforço de limpar os escombros deixados por essa reviravolta. Mas se hoje me pedissem para formular o mais concisamente possível a principal causa da ruinosa revolução que engoliu cerca de 60 milhões [de pessoas] de nosso povo, não poderia colocar com mais precisão do que repetir: “Os homens se esqueceram de Deus; é por isso que todas essas coisas aconteceram”.

Além disso, os acontecimentos da revolução russa só podem ser compreendidos agora, no final do século, tendo como pano de fundo o que ocorreu desde então no resto do mundo. O que emerge aqui é um processo de significância universal. E se eu fosse chamado a identificar brevemente o principal traço de todo o século XX, aqui também não encontraria nada mais preciso e conciso do que repetir mais uma vez: “Os homens se esqueceram de Deus”. As falhas da consciência humana, desprovida de sua dimensão divina, foram um fator determinante em todos os principais crimes deste século. O primeiro deles foi a Primeira Guerra Mundial, e muito de nossa situação atual pode ser rastreado de volta a ela. Foi uma guerra (cuja memória parece estar se desvanecendo) quando a Europa, repleta de saúde e abundância, caiu em uma fúria de automutilação que não poderia deixar de minar suas forças por um século ou mais, e talvez para sempre. A única explicação possível para esta guerra é um eclipse mental entre os líderes da Europa devido à perda de consciência de um Poder Supremo acima deles. Apenas uma amargura ímpia poderia ter levado Estados ostensivamente cristãos a empregar gás venenoso, uma arma tão obviamente além dos limites da humanidade.

O mesmo tipo de defeito, a falha de uma consciência desprovida de toda dimensão divina, manifestou-se após a Segunda Guerra Mundial, quando o Ocidente cedeu à tentação satânica do “guarda-chuva nuclear”[2]. Foi equivalente a dizer: deixemos de lado as preocupações, libertemos a geração mais jovem de seus deveres e obrigações, não nos esforcemos para nos defendermos, para não falar nada da defesa dos outros — vamos tapar nossos ouvidos aos gemidos que emanam do Oriente e, em vez disso, vivamos na busca da felicidade. Se o perigo nos ameaçar, seremos protegidos pela bomba nuclear; se não, então deixe o mundo ir para o inferno!

O estado lamentavelmente desamparado no qual o Ocidente contemporâneo afundou deve-se em grande parte a esse erro fatal: a crença de que o único problema é o das armas nucleares, enquanto na realidade a defesa da paz repousa principalmente em corações fortes e homens firmes.

Somente a perda dessa intuição superior que vem de Deus poderia ter permitido ao Ocidente aceitar calmamente, após a Primeira Guerra Mundial, a agonia protegida da Rússia enquanto ela estava sendo dilacerada por um bando de canibais, ou aceitar, após a Segunda Guerra Mundial, o desmembramento semelhante da Europa Oriental. O Ocidente não percebeu que este era de fato o início de um longo processo que significa desastre para o mundo inteiro; na verdade, o Ocidente fez muito para ajudar nesse processo. Apenas uma vez neste século o Ocidente reuniu suas forças – para a batalha contra Hitler. Mas os frutos dessa vitória há muito se perderam. Diante do canibalismo, nossa era sem Deus descobriu o anestésico perfeito – o comércio! Tal é o pináculo patético da sabedoria contemporânea.

O mundo de hoje atingiu um estágio que, se tivesse sido descrito aos séculos anteriores, teria provocado o grito: “Este é o Apocalipse!”

No entanto, nos acostumamos a esse tipo de mundo; até nos sentimos em casa nele.

Dostoiévski havia alertado que “grandes eventos poderiam nos surpreender e nos pegar intelectualmente despreparados”. Isso é precisamente o que aconteceu. E ele previu que ‘o mundo será salvo somente após ter sido possuído pelo demônio do mal’. Se realmente será salvo, teremos que esperar e ver: isso dependerá de nossa consciência, de nossa lucidez espiritual, de nossos esforços, individuais e combinados, diante de circunstâncias catastróficas. Mas já aconteceu que o demônio do mal, como um redemoinho, circunda triunfantemente todos os cinco continentes da terra.

Somos testemunhas da devastação do mundo, seja ela imposta ou sofrida voluntariamente. Todo o século 20 está sendo sugado pelo vórtice do ateísmo e da autodestruição. Esse mergulho no abismo tem aspectos inquestionavelmente globais, não dependentes nem de sistemas políticos, nem de níveis de desenvolvimento econômico e cultural, nem ainda de peculiaridades nacionais. E a Europa contemporânea, aparentemente tão diferente da Rússia de 1913, está hoje à beira do mesmo colapso, apesar de ter percorrido um caminho diferente. Diferentes partes do mundo seguiram caminhos diferentes, mas hoje estão todos se aproximando do limiar de uma ruína em comum.

Em seu passado, a Rússia conheceu uma época em que o ideal social não era fama, riqueza ou sucesso material, mas um modo de vida piedoso. A Rússia estava então imersa em um cristianismo ortodoxo que permaneceu fiel à Igreja dos primeiros séculos. A Ortodoxia da época soube proteger seu povo sob o jugo de uma ocupação estrangeira que durou mais de dois séculos, ao mesmo tempo em que se defendia dos golpes iníquos das espadas dos cruzados ocidentais. Durante esses séculos a fé ortodoxa em nosso país tornou-se parte dos próprios padrões de pensamento e da personalidade de nosso povo, das formas de vida cotidiana, do calendário de trabalho, das prioridades em cada empreendimento, da organização da semana e do ano. A fé era a força formadora e unificadora da nação.

Mas no século XVII a Ortodoxia Russa foi gravemente enfraquecida por um malfadado cisma interno. No século XVIII, o país foi abalado pelas transformações impostas à força por Pedro, que favoreceram a economia, o Estado e as forças armadas, em detrimento do espírito religioso e da vida nacional. E junto com esse iluminismo petrino desigual, a Rússia sentiu o primeiro sopro de secularismo[3]; seus venenos sutis permearam as classes educadas ao longo do século XIX e abriram o caminho para o marxismo. Na época da revolução, os círculos instruídos russos haviam virtualmente perdido a fé; e entre os sem instrução, a saúde [da fé] estava ameaçada.

Foi Dostoiévski, mais uma vez, quem extraiu da Revolução Francesa e seu ódio fervilhante contra a Igreja, a lição de que “a revolução deve necessariamente começar com o ateísmo”. Isso é absolutamente verdade. Mas o mundo nunca tinha conhecido uma impiedade tão organizada, militarizada e tenazmente malévola como a pregada pelo marxismo. Dentro do sistema filosófico de Marx e Lenin e no coração de sua psicologia, o ódio a Deus é a principal força motriz, mais fundamental que todas as suas pretensões políticas e econômicas. O ateísmo militante não é meramente incidental ou marginal à política comunista; não é um efeito colateral, mas o pivô central.

Para atingir seus fins diabólicos, o comunismo precisa controlar uma população desprovida de sentimento religioso e nacional, e isso acarreta a destruição da fé e da nacionalidade. Os comunistas proclamam esses dois objetivos abertamente e, da mesma forma, os colocam em prática. O grau em que o mundo ateu anseia por aniquilar a religião, na medida em que é algo considerado difícil de se aceitar, foi demonstrado pela teia de intrigas em torno dos recentes atentados contra a vida do Papa[4].

A década de 1920 na URSS testemunhou uma procissão ininterrupta de vítimas e mártires entre o clero ortodoxo. Dois metropolitas foram fuzilados, um dos quais, Veniamin de Petrogrado, havia sido eleito pelo voto popular de sua diocese. O próprio Patriarca Tikhon passou pelas mãos da Cheka-GPU[5] e depois morreu em circunstâncias suspeitas. Dezenas de arcebispos e bispos pereceram. Dezenas de milhares de padres, monges e freiras, pressionados pelos chekistas a renunciar à palavra de Deus, foram torturados, fuzilados em porões, enviados para campos, exilados para a tundra desolada do extremo norte ou expulsos para as ruas em sua velhice, sem comida ou abrigo. Todos esses mártires cristãos foram inabalavelmente para a morte pela fé; casos de apostasia eram poucos e esparsos. Para dezenas de milhões de leigos o acesso à Igreja foi bloqueado, e eles foram proibidos de educar seus filhos na fé: pais religiosos foram arrancados de seus filhos e jogados na prisão, enquanto os filhos foram desviados da fé por ameaças e mentiras. Pode-se argumentar que a destruição inútil da economia rural da Rússia na década de 1930, a chamada deskulakização[6] e coletivização, que matou 15 milhões de camponeses sem fazer nenhum sentido econômico, foi imposta com tanta crueldade, em primeiro lugar, com o propósito de destruir nosso modo de vida nacional e de extirpar a religião de nossos camponeses. A mesma política de perversão espiritual operava em todo o mundo brutal do Arquipélago Gulag, onde homens eram encorajados a sobreviver à custa da vida de outros.

E somente ateus desprovidos de razão poderiam ter decidido sobre a brutalidade final que está sendo planejada na URSS hoje, a ser perpetrada contra a própria terra russa, pela qual o norte russo deve ser inundado, o fluxo dos rios do norte revertido, a vida do Oceano Ártico rompida, e a água canalizada para o sul, em direção a terras já devastadas pelos mais recentes, igualmente imprudentes, ‘feitos de construção comunista’.

Por um curto período de tempo, quando precisava reunir forças para a luta contra Hitler, Stalin cinicamente adotou uma postura amigável em relação à Igreja. Este jogo enganoso, continuado em anos posteriores por Brezhnev com a ajuda de publicações de vitrine e outras fachadas, infelizmente tendeu a ser tomado pelo seu valor nominal no Ocidente.

No entanto, a tenacidade com que o ódio à religião está enraizado no comunismo pode ser julgada pelo exemplo de seu líder mais liberal, Khrushchev: pois, embora tenha empreendido vários passos significativos para estender a liberdade, Khrushchev simultaneamente reacendeu a frenética obsessão leninista em destruir a religião.

Mas há algo que eles não esperavam: que em uma terra onde as igrejas foram arrasadas, onde um ateísmo triunfante se enfureceu descontroladamente por dois terços de um século, onde o clero é totalmente humilhado e privado de toda independência, onde o que resta da Igreja como instituição é tolerado apenas por causa da propaganda dirigida ao Ocidente, onde ainda hoje as pessoas são enviadas para os campos de trabalho por sua fé, e onde, dentro dos próprios campos, aqueles que se reúnem para rezar na Páscoa são atirados em celas de punição – eles não podiam supor que sob esse rolo compressor comunista a tradição cristã sobreviveria na Rússia!

É verdade que milhões de nossos compatriotas foram espiritualmente corrompidos e devastados por um ateísmo oficialmente imposto, mas lá ainda existem muitos milhões de crentes: são apenas as pressões externas que os impedem de falar, mas, como sempre acontece em tempos de perseguição e sofrimento, a consciência de Deus em meu país atingiu grande agudeza e profundidade.

É aqui que vemos o alvorecer da esperança: por mais formidavelmente que o comunismo esteja eriçado de tanques e foguetes, por mais sucessos que obtenha na conquista do planeta, ele está condenado a nunca derrotar o cristianismo.

O Ocidente ainda não experimentou uma invasão comunista; a religião permanece livre. Mas a própria evolução histórica do Ocidente foi tal que hoje também está experimentando um esgotamento de consciência religiosa. Ela também testemunhou cismas devastadores, guerras religiosas sangrentas e inimizades, para não falar da maré de secularismo que, desde o final da Idade Média em diante, inundou progressivamente o Ocidente. Esse enfraquecimento gradual da força de dentro é uma ameaça à fé que talvez seja ainda mais perigosa do que qualquer tentativa de agredir violentamente a religião a partir de fora.

Despercebidamente, ao longo de décadas de erosão gradual, o sentido da vida no Ocidente deixou de representar algo mais elevado do que a busca da “felicidade”, um objetivo que até foi solenemente garantido por constituições.

Os conceitos de bem e mal foram ridicularizados por vários séculos; banidos do uso comum, eles foram substituídos por considerações políticas ou de classe, de valor efêmero. Tornou-se embaraçoso apelar para conceitos eternos, embaraçoso afirmar que o mal faz sua morada no coração humano individual antes de entrar em um sistema político. No entanto, não é considerado vergonhoso fazer concessões diárias a um mal integral.

A julgar pela contínua avalanche de concessões feitas diante dos olhos de nossa própria geração, o Ocidente está inevitavelmente escorregando para o abismo. As sociedades ocidentais estão perdendo cada vez mais sua essência religiosa à medida que entregam irrefletidamente sua geração mais jovem ao ateísmo. Que outra evidência de impiedade alguém precisa, se um filme blasfemo sobre Jesus é exibido por todos os Estados Unidos, supostamente um dos países mais religiosos do mundo? Ou se um grande jornal publica uma caricatura desrespeitosa da Virgem Maria? Quando os direitos externos são completamente irrestritos, por que alguém deveria fazer um esforço interior para se conter de atos ignóbeis?…

Ou por que alguém deveria recuar do ódio ardente, qualquer que seja sua base – raça, classe ou ideologia zelosa? Tal ódio está de fato corroendo muitos corações hoje. Professores ateus no Ocidente estão criando uma geração mais jovem em um espírito de ódio à sua própria sociedade. Em meio a toda vituperação, foi esquecido que os defeitos do capitalismo representam as falhas básicas da natureza humana, livres de todas as limitações (assim como os diversos direitos humanos são); que sob o comunismo (e o comunismo está junto a todas as formas moderadas de socialismo, que são instáveis) – sob o comunismo as mesmas falhas tornam-se completamente desenfreadas em qualquer pessoa com o último grau de autoridade; e que quaisquer outros sob esse sistema realmente atingem a “igualdade” – a igualdade de escravos indigentes. Tais incitações ao ódio estão passando a caracterizar o mundo livre de hoje. De fato, quanto mais amplas são as liberdades pessoais, quanto maior o nível de prosperidade ou mesmo em situação de abundância, mais veemente, paradoxalmente, é esse ódio cego. O Ocidente desenvolvido contemporâneo demonstra assim, com seu próprio exemplo, que a salvação humana não pode ser encontrada nem na profusão de bens materiais, nem em meramente ganhar dinheiro.

Esse ódio voraz então se dissemina através de tudo o que está vivo, através da vida em si, pelo mundo com suas cores, sons e formas, pelo corpo humano. A frustrada arte do século 20 está perecendo com esse ódio horrendo, pois a arte é infrutífera sem amor.

No Oriente, a arte entrou em colapso porque foi derrubada e pisoteada à força, mas no Ocidente a queda foi voluntária, um declínio em uma busca artificial e pretensiosa onde o artista, em vez de tentar externar o plano divino, tenta se colocar no lugar de Deus.

E aqui, novamente, o mesmo resultado é produzido tanto no Oriente como no Ocidente, através de um processo mundial, por meio da mesma causa: de que os homens se esqueceram de Deus.

Confrontados com o ataque do ateísmo mundial, os crentes estão desunidos e frequentemente atônitos. E, no entanto, o mundo cristão (ou pós-cristão) faria bem em observar o exemplo do Extremo Oriente.

Recentemente tive a oportunidade de observar na China Livre[7] e no Japão como, apesar da aparente menor precisão de seus conceitos religiosos, e apesar da mesma inatacável “liberdade de escolha” que existe no Ocidente, tanto a sociedade quanto a sua geração mais jovem têm preservado um senso moral em maior grau do que é verdade no Ocidente e foram menos afetados pelo espírito destrutivo do secularismo.

O que se pode dizer sobre a falta de unidade entre as várias religiões, se o próprio cristianismo tornou-se tão fragmentado? Nos últimos anos, as principais Igrejas cristãs deram passos em direção à reconciliação. Mas essas medidas são muito lentas: o mundo está perecendo 100 vezes mais rapidamente. Ninguém espera que as Igrejas se fundam ou que revisem todas as suas doutrinas, mas apenas que apresentem uma frente comum contra o ateísmo. Mas para tal propósito os passos dados são muito lentos.

Existe também um movimento organizado para a unificação das Igrejas, mas apresenta um quadro peculiar. O Conselho Mundial de Igrejas parece se importar mais com o sucesso dos movimentos revolucionários no Terceiro Mundo, enquanto permanece cego e surdo à perseguição da religião onde isso é realizado de forma mais consistente – na URSS. “Não ver os fatos” é impossível; deve-se então concluir que é, de certa forma, conveniente não ver, não se envolver? Mas se for esse o caso, o que resta do cristianismo?

É com profundo pesar que devo registrar aqui algo que não posso deixar passar em silêncio. Meu antecessor que recebeu este prêmio no ano passado – nos mesmos meses em que o prêmio foi preparado – deu apoio público às mentiras comunistas com sua deplorável declaração de que não havia notado a perseguição à religião na URSS. Diante da multidão daqueles que pereceram e daqueles que hoje são oprimidos, que Deus seja seu juiz.

Parece cada vez mais evidente que, mesmo com as manobras políticas mais sofisticadas, o laço no pescoço da humanidade fica mais apertado e sem esperança a cada década que passa, e parece não haver saída para ninguém – nem nuclear, nem política, nem econômica, nem ecológica. É realmente assim que as coisas parecem ser.

Diante das montanhas, ou melhor, de todas as cadeias montanhosas de tais eventos globais, pode parecer incongruente e inadequado lembrar que a chave primária de nosso ser ou não-ser reside em cada coração humano individual, na sua preferência pelo bem ou pelo mal específicos. No entanto, isso continua sendo verdade até hoje, e é, de fato, a chave mais confiável. As teorias sociais que tanto prometeram demonstraram sua falência, deixando-nos em um impasse. O povo livre do Ocidente poderia razoavelmente esperar entender que seu ambiente inclui inúmeras falsidades livremente nutridas, mas que não permitissem que mentiras lhes fossem impostas tão facilmente. Todas as tentativas de encontrar uma saída para a situação do mundo de hoje são infrutíferas sem um regresso arrependido de nossa consciência ao Criador de tudo: sem isso, nenhuma saída será iluminada e seremos incapazes de encontrar nosso caminho. Os meios que deixamos para nós mesmos são muito empobrecidos para a tarefa. Devemos primeiro reconhecer o horror perpetrado não por alguma força externa, não por inimigos de classe ou nacionais, mas dentro de cada um de nós individualmente e dentro de cada sociedade. E particularmente em uma sociedade livre e altamente desenvolvida, pois nesse caso certamente fizemos tudo por nós mesmos e por nossa própria livre vontade. Nós mesmos, em nosso egoísmo irrefletido diário, estamos apertando esse laço.

Perguntemo-nos: não são falsos os ideais do nosso século? E nossa terminologia loquaz e glamourosa não é igualmente infundada, uma terminologia que leva a propor recursos superficiais para cada dificuldade? Em cada campo de atuação, todas essas questões devem ser submetidas a uma revisão lúcida, enquanto ainda há tempo. A solução para a crise não será encontrada nos caminhos bem trilhados de noções convencionais.

Nossa vida não consiste na busca do sucesso material, mas na busca de um crescimento espiritual digno. Toda a nossa existência terrena é apenas um estágio de transição no movimento em direção a algo mais elevado, e não devemos tropeçar e cair, nem devemos permanecer inutilmente em um degrau da escada. As leis materiais por si só não explicam nossa vida nem lhe dão direção.

As leis da física e da fisiologia nunca revelarão a maneira incontestável pela qual o Criador constantemente, dia após dia, participa da vida de cada um de nós, concedendo-nos infalivelmente a energia da existência; quando essa assistência nos deixa, morremos. Na vida de todo o nosso planeta, o Espírito Divino move-se não com menos força: isso devemos entender em nossa sombria e terrível hora.

Em vez das esperanças insensatas dos últimos dois séculos, que nos reduziram à insignificância e nos levaram à beira da morte nuclear e não nuclear, nós podemos alcançar, e somente com determinação, a mão calorosa de Deus, a qual com tanto ímpeto e autoconfiança afastamos. Se fizéssemos isso, nossos olhos poderiam ser abertos para os erros deste infeliz século 20 e nossas mãos poderiam ser direcionadas para corrigi-los. Não há nada mais a que se agarrar, na ruína: todos os pensadores do Iluminismo não podem nos dar nada.

Nossos cinco continentes estão presos em um redemoinho. Mas é durante tais provações que os dons mais elevados do espírito humano se manifestam. Se perecermos e perdermos este mundo, a culpa será somente nossa.

Traduzido por Denilson Cândido (denilson.dr.candido@gmail.com) e revisado por Mário Freire mariojorgefreire5@gmail.com), a partir da tradução para o inglês efetuada por A. Klimoff (© Direitos autorais mundiais de Aleksandr Solzhenitsyn. – https://www.templetonprize.org/laureate-sub/solzhenitsyn-acceptance-speech/).
NOTAS


[1] Prêmio Templeton (Templeton Prize) – condecoração anual centrada na importância da espiritualidade, estabelecida em 1972 e que leva o mesmo nome de seu idealizador, o empresário e filantropo americano Sir John Marks Templeton (1912-2008). Concedida inicialmente em sua primeira década a pessoas que fizeram grandes realizações exclusivamente por motivação religiosa e, posteriormente, a partir da década de 1980, a trabalhos que conciliam ciência e religião, o prêmio passou a ser administrado pela Fundação John Templeton desde a criação desta, em 1987. O valor monetário do prêmio é ajustado de maneira que exceda o montante dado pelo Prêmio Nobel, uma vez que Templeton sentia que a “espiritualidade era ignorada” nos prêmios Nobel. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%AAmio_Templeton).

[2]Guarda-chuva nuclear” – expressão que se refere à garantia de proteção de um Estado com armas nucleares a um Estado não-nuclear aliado. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guarda-chuva_nuclear).

[3] Secularismo – é a ideia da separação entre política e religião; os processos de implantação variam e podem ocorrer tanto de forma organizada e pacífica, pela qual se define o Estado laico, ou seja, onde o governo não impõe uma religião oficial e, ao mesmo tempo, garante aos cidadãos o direito ao culto livre, quanto de forma autoritária e excludente, onde se proíbe qualquer religião, inclusive por meio de perseguição e punições, configurando, neste caso, um regime de governo com base em doutrinas ateístas. (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Secularism).

[4] História dos dois atentados a que João Paulo II sobreviveu – O Papa de Fátima sofreu um atentado a 13 de Maio de 1981. Sobreviveu. Um ano depois, na Cova da Iria, quando se preparava para agradecer a salvação, sofreu outro atentado. Voltou a sobreviver. (Fonte: https://jornaleconomico.pt/noticias/historia-dos-dois-atentados-a-que-joao-paulo-ii-sobreviveu-157981).

[5] Cheka-GPU – uma das primeiras organizações de polícia secreta da União Soviética, criada sob a sigla “Cheka” em 20 de dezembro de 1917, por Vladimir Lenin, posteriormente, renomeada, e reorganizada, como “GPU” em 6 de fevereiro  de 1922, e sendo novamente renomeada em 15 de dezembro de 1923 como “OGPU”. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia_secreta_da_Uni%C3%A3o_Sovi%C3%A9tica).

[6] Deskulakização – campanha soviética de repressão política contra os camponeses ricos, os “kulaks”, e suas famílias, no período de 1929-1932, na União Soviética, com o objetivo de “construir o socialismo” não apenas nas cidades, mas também nas zonas rurais.
(Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Deskulakiza%C3%A7%C3%A3o).

[7] China Livre – oficialmente denominada “República da China” (ROC – Republic of China), é um arquipélago de 168 ilhas a sudeste e independente da “China Continental” (RPC – República Popular da China, no Continente Asiático), sendo a principal ilha Taiwan, também conhecida como Formosa, onde se encontra a capital e sede de governo Taipei.
(Fontes: https://en.wikipedia.org/wiki/Free_area_of_the_Republic_of_Chinahttps://en.wikipedia.org/wiki/Taiwan).

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