Em o Delírio da Lira inculta & Bela flor do Lácio, Murilo Moreira Veras discorre a jornada de heróis e meio-heróis da Literatura e da Filosofia em sequência narrativa e magistral desempenho lírico-poético. Diria que um poema histórico-literário, ou o ensaio d’algum ou outro feito filosófico. Entre os heróis vários elencados, renomados literatos e virtuosos doutrinadores filosóficos, imiscuído de adversários e desafetos, de mentes cultas e brilhantes, mas envoltas em franco delirum tremus.

Certo maniqueísmo, em leitores desatentos, pode encobrir as belas nuances de resiliência antifrágil e de imaginação criativa, presentes na História, mesmo em cenários de pobreza, sofrimento e morte. Não foi assim com as heresias na história da Igreja fundada por Cristo? Foi da resistência ativa aos ataques arianos, albigenses e de jansenistas “moderados” que o ideal evangélico se sobressaiu em doutrinas teológicas, ou no cultivo às artes liberais – das arte matemáticas do quadrivium à mais consistente retórica filosófica e cultural.

De Euclides a Shakespeare, de Homero a Raimundo Lúlio, a cultura alienígena alimentou sonhos de um ethos, com ou sem pathos, na penumbra de túneis e florestas do pensamento dialético e especulativo. Seus ideais apontam luzes, sua percepção enumera outras metáforas mais, de melhor ou pior foco elucidativo. De alguma forma, sintaxe e semântica, belo e inculto precisam conviver.

Na literatura brasileira, de Camões a Villa Lobos, de Mário Ferreira dos Santos a Machado de Assis, os sonhos de melhor mundo possível não parecem ser tão geométricos como de Espinoza e Leibniz, distante disso, estão permeados no jogo semiótico de brilho e escuridão – entre a beleza da Lira, o inculto do quotidiano e o delírio culto dos escribas e plebeus de Roma e de Lácio.

Entrementes o autor não vai se posicionar opondo bem e mal, contrapondo bons e maus textos e pretextos num devir histórico e cultural fora da cosmovisão crística. Ideais de mundo, apesar do materialismo reinante, também são contextos do corpo e do pensamento. Lógica e metalógica andam juntas “para dar corpo ao pensamento”, na pedagogia escorreita de irmã Maria Joseph – autora de o Trivium.

Tomemos aqui apenas dois nomes que me são dos mais familiares em minha não diminuta lavra, Raimundo Lúlio (1235 – 1316) e Gustavo Corção (1906 – 1978). Recentemente escrevi Encontros de Raimundo Lúlio – a quatro minutos do Apocalipse, em minha Devenir editora. Deste posso incorrer mais amiúde, desde já confessando minha modesta influência na parte mais filosófica de toda obra. Influência de pouca monta para com a bagagem de conteúdos do prof. Murilo Veras – incluindo a casuística realista de encontros e desencontros da cultura regional maranhense. Quanto a Corção, enquanto escrivão tomista, não pretendo aqui competi-lo com a tese crística de Simone Weil, creio que mais ao agrado de nosso autor. Apenas chamaria a atenção para os delírios de uma época: a do “modernismo nouvelle vague” (p. 15) de um Oswaldo de Andrade.

O filósofo maiorquino Ramon Llull também teve seus delírios, em graciosas penumbras do conhecimento. Somente Baquerma, uma narrativa precursora inédita do estilo romance, já o qualificaria como literato, e daí se vão mais 275 livros, somente entre os catalogados. Para alguns louco e fantasioso, contando causos de vulgo popular medieval, para outros, precursor da linguagem combinatória e computacional. Um exemplo de síntese do Lácio da latim popular e campesino com o Lírio da linguagem culta de Roma? Vejamos um trecho algo interessante:

… Na medida do filósofo maiorquino, filosofar é propor

um intento de Vontade, a favor da razão, serva da Verdade..

Sua Arte Breve, dos livros últimos, o que se constitui

ao já exposto em sua Arte Magna, seu legado maior,

— para melhor e bem compreendê-la.

(do juízo prático aos saberes de maior alcance,

conhecimentos sob o jugo da Moral, em Ética a Nicômaco)

Da Razão universal só se conhece a eternidade,

não de si próprio ou servil entendimento de subjetividade.


Da parte de Corção, viria na obra geral apenas um ligeiro contraponto crístico ao ambiente de modismo em textos e pretextos de liberdade da expressão niilista dos pensadores franceses. Vejamos essa parte:

Mário de Andrade e sua linguagem eufemística,

enquanto Oswald, também Andrade,

explode com seus estouvados escritos,

na cola dos franceses da primeira hora em Paris.

Salvo bem raro ledo engano,

em aguda reação a ditos estouvos, Corção,

nominado Gustavo, segue algo de Machado, dito de Assis.

Bandeira tomasiana em punho, extrapola o determinismo

positivista em as Fronteiras da Técnica;

numa esgrima escritural, desbrava uma lógica inédita:

a atualidade (e a heurística) de santo Agostinho de Hipona,

em seu Dois Amores, Duas Cidades.

Neste ínterim, o Delírio da Lira inculta & bela da flor do Lácio nos faz reavivar autores a casos injustamente esquecidos da literatura nacional e regional. Entre outros, a de Nauro Machado, ex-presidente da Academia Maranhense de Letras, egrégio escrivão que, segundo informação pessoal, foi como que escanteado por figuras menos exímias, para não dizer medíocres, “na vaidosa luta por prestígio que impera nos meios academicistas”. Ou o caso do padre Nivaldo Monte, arcebispo de Natal -RN, grande orador e  escritor injustamente esquecido no atual mercado editorial. Foi por ele que conheci e li, com muito gosto, a Montanha dos sete patamares, de Thomas Merton.

Mas vejamos o que esperar de Lácio em flor que foi a nossa grandiosa língua portuguesa. Eis, para mim, apenas uma das belas surpresas desse poema filosófico-literário:

… Enquanto, ali nesses confins de mundo, vivem

os íncolas, armados de flexas, lanças e atabaques,

verdadeiros bugres a ousar enfrentar

os forasteiros intrusos

— o idioma que falam, desconhecido,

sabe-se lá oriunda de outras plagas,

por esses confins do Novo Mundo.

Mas logo se ajustam, confraternizam-se,

gregos e troianos,

inclusive os dois idiomas se entrosando,

os novos invasores…

E assim, consorte ajustado entre colonizadores

e colonizados, eis que nesses confins do desconhecido

mundo, nestas brasílicas terras do pau-brasil,

reina a inculta língua da Flor do Lácio, ainda bela.

Enfim, aqui temos um estilo inovador, contado em ritmo de prosa. O ritmo, as imagens de ideias e casos não estão nem precisam se dar em dados ipse literis, convém que apenas apontem o imaginário do leitor sem tanta rima, mas carregada de símbolos, bom senso e destreza conceitual. A beleza retórica não dispensa a destreza e a reta consistência lógica.

Boa leitura!