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NO FLORESCER DA IDADE MÉDIA, a perrenga pela verdade, felicidade e sabedoria por vezes era retratada como uma liturgia de combate simbólico envolvendo virtudes, coragem e piedade. Somente a inclinação de homens fortes, robustos e destemidos ao pendor da fragilidade da sabedoria mais contemplativa já contava muitos pontos na formação dos exércitos de libertação espiritual. Por isso a figura mais adotada para a sabedoria, calcada nas sagradas escrituras, era de uma bela Dama. Frágil ou antifrágil, o fato é que a busca crescente por se encantar e ser encantado por tal dama exige muito esforço, labuta e perseverança, entre outros do ora, led et labora, da liturgia dominicana.
A ordem de comando de uma campanha de batalha, por menor que fosse, costumava se organizar por um mínimo de alinhamento, à frente, de bandeiras, estandartes e trombetas. Cavaleiros devidamente ornamentados enaltecem símbolos de lealdade e fidelidade destacados em brasões coloridos, apontando para a valoração de “corpos” seculares e divinos (geralmente cruzes e leões amarelos, por exemplo, dão o tom de destaque em fundos azul ou vermelho). Com a aproximação do front de disputa, digamos mais bélica, os adereços virtuais se afastavam dando lugar a infantaria motivada para avançar com ardor redobrado. Mas a batalha contra o mal se trava sobretudo no campo do virtual, portanto, cativar a tal Dama, entre outras com seu epíteto de paz, exige muito mais que performances robustas de armas e brasões. É a arte da disputatio (das disputas), onde até lógica e retórica se confrontam no uso da linguagem.
No campo filosófico, a posição de estandartes medievais foi representada por Thomas Le Myésier (†1336), um dos primeiros admiradores do filósofo lógico-apologeta Ramon Llull.
“Com o intuito de facilitar a compreensão da obra do maiorquino, Le Myésier preparou uma compilação conhecida como Breviculum, contendo uma série de doze riquíssimas iluminuras que ilustram a vida do filósofo catalão. Duas delas tratam da disputa, alegoricamente representada como um assédio militar, uma batalha, uma disputatio. A primeira apresenta Aristóteles (384-322 a. C.) à frente de seu exército, em um assalto à Torre da Mentira e da Ignorância (iluminura VII). Lá encontra-se a Verdade aprisionada em um calabouço, triste, deprimida.
A iluminura acima apresenta Ramon Llull (o comentador de Aristóteles) na retaguarda, com seu próprio exército, que vai em socorro do filósofo grego para a libertação da Verdade. À sua frente estão três cavaleiros com trombetas. São as três potências da alma racional: o Intelecto, a Vontade e a Memória (reminiscência agostiniana da filosofia de Llull, mas, sobretudo, reflexo analógico da imago mundi do pensamento de nosso autor). Elas proclamam a existência de um só Deus e Sua Santíssima Trindade. A seguir, o filósofo, montado no cavalo da intenção reta, porta uma lança com um estandarte, com os dizeres: ‘Estimemos a Deus pela primeira intenção e pela maioridade do fim; contemplemos o mérito pela segunda intenção e pela minoridade do fim’.
Com eles, Ramon pretendia vencer a disputa pela fé cristã e, com a razão, converter o mundo ao catolicismo. ”.
(Ricardo da Costa. https://www.ricardocosta.com/artigo/o-dialogo-no-limite-disputa-entre-pedro-e-ramon-o-superfantastico-1311-arte-e-filosofia)
Enamorar-se de uma dama virgem não é nada fácil. A mera aproximação solicita tato, educação e cortesia sincera…. o crescimento sustentável desse amor ágape requer provas de confiança por parte da alma pecadora, uma curva de confiança inicial bem crescente de entrega, impulsionada pela eros — o deleite, seguida de uma fase mais consistente, da minoridade lógica a maioridade retórica, lenta, numa aproximação afetiva assintótica, numa curva mais alongada — árida, lógica, retórica, apologética. Tanto mais, quanto mais o objeto amado seja daqueles que sempre estarão muito acima de nossa capacidade de compreensão e correspondência amorosa.
Curiosamente algo da aproximação assintótica foi bem formulada por economistas em sua avaliação de medidas de valoração de bens nada espirituais. Formulou-se a lei dos rendimentos marginais para entender as formas decrescentes de crescimento de muitos indicadores econômicos e vale até para a aplicação bruta de insumos na agricultura, como fertilizantes e água, na lei de rendimentos decrescentes das culturas. Então o coeficiente de afinidade marginal seria um indicador de aproximação dos entes em seu porvir, do ente-enquanto-ente, pecador, para com o ente-ser conectado ao bem comum do particular no universal, portanto, transcendental; enfim, de um ser-em-contemplação. Mário Ferreira chamaria isso de uma timese parabólica, de seres em devir.
Um enamoramento mais passional estará sempre em trade off com uma afinidade excessivamente robusta ou excessivamente frágil? Convém buscar-se uma relação mais antifrágil, dando à nossa Dama provas de um afeto sem limites, pautado num enamoramento de corajoso vigor jovial e piedosa sabedoria prudencial. Muito esforço inútil é despejado com afetos out… out, enquanto a razão e a vontade bem ordenadas, da ordo studiorum, nos aponta para o céu estrelado. As duas posições ficariam assim:
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Enamoramento robusto out an… out an… afinidade frágil
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namoramento crescente et an… et an afinidade marginal (de)crescente e antifrágil
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A Dama universalis pode se encontrar hoje aprisionada no alto de uma Torre, acima de nosso entendimento. Seus dons mais “universais” são hieráticos ↗, algo de nouminoso. Para resgatá-la muros, arrimos e fossos tenebrosos da modernidade, da Era dos Gentios, precisam se transpassados, talvez a entrada de portões negociada com os ardis linguísticos de agnósticos e ateus.
Mas Raimundo Lúllio continua sendo exemplo de combate, em seu amor a Madre Igreja e em suas disputas com judeus e sarracenos, místicos platônicos e lógicos árabes, universitários e autoridades religiosas.
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↗ Hierático: do latim hieros, sagrado. Diz respeito aos dons mais sublimes, portanto pouco acessíveis à linguagem retórica ordinária ou à lógica analítico-formal.