(transcrição de podcast “atualidades em Devenir”)
link https://www.youtube.com/watch?v=uL00zeNgIY4&pp=ygUPZGV2ZW5pciBkdW5hIElJ
Título: o Trivium e a arte cinematográfica (ou) a vitória da escuta da palavra
Tenho dito que as 3 artes do trivium se combinam para formar a arte da linguagem e do pensamento. Da gramática para a lógica (ou dialética), imaginamos mundos possíveis numa regra comum e universal de expressão da linguagem, da lógica à retórica, selecionamos os mundos de interesse para descrever um cenário mais realista ou propor uma visão mais coerente a nós mesmos e aos outros. Nesse processo o pensamento como que voa na frente, acelerado, muitas vezes se desprendendo da realidade invisível aos nossos olhos. Isso não é propriamente ruim, é parte da proeza dos atos mentais, dos atos abstrativos. A abstração mental é como que a quintescência do homem racional, é nela que enxergamos para além de meros fenômenos sensitivos. Veremos logo mais como esse milagre se opera na maravilhosa arte de compor e construir conceitos, essa realidade invisível e intangível que está sempre a desafiar nossa inteligência. Efetivamente, o conceito e a memória, juntos, fundamentam nada menos que a estrutura de nossa visão de mundo, homem, cosmos, Deus, etc.
Aproveitando o sucesso do filme Duna 2, digressamos algo da profundidade do livro escrito em relação ao que se vê nas entrelinhas do filme de Hollywood, lançado esse mês. No tema desse podcast confrontamos as 3 artes do trivium com a arte do cinema, mas como subtítulo temos “a vitória da escuta”. Por que? Nesse breve espaço pretendo mostrar que Aristóteles tinha razão quando priorizou o processo de escuta ao da vista sensitiva. Minha intenção é tão-somente fazermos nos despertar do sono da matrix de nossos tempos…
Nossos ouvidos recebem ondas sensitivas, assim como a vista capta as ondas de luz, mas a operação que se segue é potencialmente muito mais elaborada, pois a audição exige elaborações abstratas de entendimento. O cinema não deixa de ser uma arte retórica, no sentido de transmitir uma motivação, de despertar algum sentimento extra, de oferecer uma intenção de valor, nova ou já existente, à nossa memória. A mídia audiovisual tem essa propriedade, de intensificar, quase instantaneamente, sentimentos latentes na alma. A jornada do herói naturalmente é desses sentimentos, estão lá, ainda que um tanto adormecidos pelas tarefas do quotidiano, da vida moderna e pragmática.
Deixemos de lado a pílula azul do politicamente correto. Analisemos filosoficamente a coisa toda, dialeticamente, como que ao modo de Mário Ferreira dos Santos. A modernidade valoriza o que, senão a coisa extensa, a matéria, o bem estar etc.?
Há aí uma tensão, entre a prática e a teoria, ou entre o operar e o contemplar. A simbologia maximamente universal da Bíblia já nos dá uma pista, a da proporção entre trabalho e descanso, proporção de 1:6. Ocorre que a tensão é entre algo facilmente mensurável e a coisa intensa, o que é propriamente o valor, o valorável, com o tempo e com a maturidade dos saberes. Pelo simples senso comum todos já sabem que a sabedoria é um caminho de árdua conquista. Em Duna 2, por exemplo, a jornada do herói, Paul Artrides se dá em saltos do enredo, em 3 horas, sai das cavernas para a conquista do império intergaláctico. Em outro podcast tentei mostrar como tal conquista também foi historicamente feita pelos jesuítas ante o império dos príncipes da Alemanha, Holanda e Inglaterra. Também foi a conquista de Carlos Magno, após 4 ou 5 séculos de apurados estudos feitos por monges sobre a cultura pagã, grega, latina e oriental. Resultado do trabalho de copistas habilidosos, no silêncio de suas selas. Somente depois disso, o grande sábio Alcuíno, trazido da Grã Bretanha para a Alemanha, no século IX, pôde estruturar seu sistema educacional, inclusive mantendo e melhorando ainda mais a estrutura das sete artes liberais do Trivium.
Ora, sabemos que Star Wars se inspirou em Duna que por sua vez se inspirou no Senhor dos Anéis. Mas a essência da saga, como de todo épico, provém dos grandes símbolos da narrativa retórica. Tolkien, ao seu modo imaginativo, sempre quis transmitir essa essência da res intensa, a coisa qualitativa, o valor invisível e transcendental, que vai sendo transmitido pelas gerações via memória e tradição. A arte de compor diálogos no cinema foi perdendo sua valorosa guarda para efeitos audiovisuais.
Onde entra aí o conceito? Aí está a base do salto do reino da quantidade, das matemáticas, para o da vida concreta, dos algoritmos determinísticos, operativos, para a deliberação sábia, fruto da experiência e do cultivo silencioso da alma (e como não incluir nisso, a meditação diária). Ao contrário dos números, de conotação 1:1, determinística, funcional, bem ao gosto dos sistemas computacionais, nos conceitos temos a diversidade dos significados, a elasticidade em suas designações, cenários e signos denotativos, de conotação 1:muitos. A quintessência do conceito abstrativo está em compor complexidades de mundo, homem, cosmos, etc. É claro que sua eficácia depende de alguma estrutura doutrinal. A de Tomás de Aquino dependeu dos conceitos de potência e ato e das 4 causas aristotélicas…
Não vou entrar nessa seara, espero ter outros momentos para isso. Importa agora entender que nenhuma infraestrutura, como dos algoritmos de I.A., se sustenta fora de sua caixinha de conhecimentos da res extensa, de coisinhas mensuráveis e tangíveis. O inteligível, por definição está na ordenação de superestruturas conceituais e simbólicas, o cabedal de saberes, no perscrutar a palavra de homens e divindades. Mas sair aí digressando e especulando conotações 1:muitos de múltiplos deuses e demiurgos apenas transfere em problema para outro, talvez pior. Infelizmente — ou felizmente — o homem precisa passar pelos mais diversos obstáculos. Deve se superar, precisa queimar tutano, acionar o tico-teco do cérebro, da mente e do espírito. Diálogo, dialética e lógica são apenas 3 dos conceitos mais cabulosos que se tem notícia, por isso são tão incompreendidos pelo jeitinho fácil dos modernos.
Um exemplo, vocês sabiam que o Papa João XXI, contemporâneo de Tomás de Aquino é o famoso Pedro Hispano, um dos pais da lógica escolástica? Que Leibniz, segundo o professor Olavo de Carvalho, o maior filósofo depois de Aristóteles, se inspirou em Raimundo Lúlio, um espanhol venerável, também contemporâneo de ambos?
Pois bem, se os lógicos modernos do Círculo de Viena tiveram um mérito, foi o de lançar, com ousadia, a teoria semântica da verdade (especificamente, entre outros, proposta por Alfred Tarsk, um polonês!). Mas a base do universo da semântica já estava posto, em germe, na velha e boa escolástica. O que aqueles três mestres diriam hoje do uso da lógica simbólica na interpretação de máximas universais da Bíblia, de Cícero e de um Dante Alighieri, que seja? Em meu Guia do estudante de Lógica, ainda no prelo, por exemplo, gosto de citar a singela passagem de, abre aspas, “Deus fez tudo em medida, peso e número”, fecha aspas; quais os significados maiores, de maio impacto causal ou digamos significativo-causal disso? Pensemos com Mário Santos, o que seria a medida intensiva de um número? Existem números intensos, intenso com s, mesmo, de intensivo. Como se daria a tensão, causal ou não causal, disso com as ciências da natureza?
Um parênteses aqui, um movimento tensional supõe oposições, confrontos dialogais do tipo dualístico, dual. Ficar apenas nisso não dá em nada. Parodiando Raimundo Lúllio, o passo seguinte e conveniente da dualidade é a tríade, e boa parte, mesmo da filosofia da linguagem moderna depende disso. O prognóstico de mundos possíveis, de suas possibilidades, mesmo na economia, depende disso. Mas a sacada de Lúlio foi compor a arte combinatória, como que as bases de árvores de decisão de conceitos universais, em ordem de signos e significados, antes de compor o decompor textos, contextos e pretextos do discurso argumentativo. Com Pedro Hispânico, temos ao menos uma base propedêutica inicial para o uso de lógica dedutiva e indutiva, demonstrativa e proposicional, princípio da causalidade metafísica, etc etc. Fecha parênteses.
Poderia seguir ao infinito, poderia analisar bem na pratica, analisando ordem e caos na política e economia, compreendendo melhor as deliberações sobre o conceito de humanismo em Tomas de Aquino, no Concílio Vaticano II, etc etc. Mas pensando na educação clássica, homeschooling, etc. Vou deixando aqui apenas a seguinte questão: Onde nossa educação falhou na interpretação interdisciplinar, no 1:muitos das muitas disciplinas impostas pelo sistema educacional moderno?
Tem cabimento as ciências humanas não se entenderem entre si? Que dizer então da interdisciplinaridade de sintaxe e de semântica entre toda a vasta área de ciência exatas e humanas nas Universidades?
Uma pista, os algoritmos de I.A. somente dão peso, medida e número pela mera sintaxe de símbolos simples. Como não avançar na semântica ou hermenêutica senão com boa memória, vocabulário respeitável, e uma boa disposição para a escuta atenta da Palavra? (em podcasts anteriores falei da aplicação do trivium na própria leitura de livros, confiram lá!)
Da Palavra de Deus à narrativa dos épicos, na jornada dos heróis, a proposta do Trivium faz Gramática quase igual a Literatura, faz da Gramática, a primeira arte, a arte do que há de melhor na literatura, da literatura clássica, das obras vitoriosas, porque traduzem os pensamentos de sempre.
Quem viver verá, seja vitorioso…
Na sequência, aos persistentes, vou dar um exemplo de uso prático da arte da escuta na mais árida das disciplinas sociais, nada menos que na Economia!
Aos demais, até a próxima, se Deus quiser.
Análise econômica do valor (ao modo dialético de Mário Santos)
Por oportuno, vou lhes mostrar o sentido prático da tensão e intensão, com s, de intenso (não de intenção, repito) dos valores e das valorações pessoais na economia. Publiquei um artigo sobre isso na revista Mises, uma revista de padrão 3 do CAPES, portanto de bom reconhecimento cientifico no meio acadêmico. O tema do artigo foi a relação lógica e dialética dos valores de uso e de troca na economia. Quando falo em valoração pessoal já estou tomando uma posição metodológica na economia, ainda pouco ou mal explorada nos cursos de graduação em economia. Explico, na Escola austríaca de economia, o exato oposto da escola keynesiana, o fundamento do crescimento econômico se encontra na ação humana propositada, nas motivações de produzir e consumir bens. É uma posição da microeconomia, não da macroeconomia de sir Keynes. A tensão entre micro e macro não é ilegítima, faz parte da complexidade da atividade econômica local e global, globalizada. O que não vale é a perspectiva de sobrevalorizar o macro, superestimando o poder do Estado. Esse é o truque de Keynes. O truque vil, sejamos francos, da constante k de capital e do G dos supostos investimentos do Estado na sociedade. Basta o uso do senso comum para perceber que o capital é um tanto quanto dinâmico, não constante, e que o capital aplicado pelos governos é um recurso subtraído de investidores em livre competição para serem aplicados por monopólios dos amiguinhos do Governo no poder.
Ora, o valor de troca é medido pelos preços praticados na sociedade, é o resultado de uma infinidade de transações, mormente espontâneas de uma infinidade de agentes de produção e consumo. Governo nenhum pode controlar isso sem estancar de vez o crescimento econômico. Por outro lado, temos os valores de uso, a valoração de bens ditada pelos consumidores, obviamente a apetência de valor espontâneo das famílias numa sociedade minimamente livre, que se possa dizer não escrava. Me baseei sobretudo no livro de Mários Santos, do seu ´”manual” de Lógica e Dialética. Então o que temos aqui? A motivação maior de bens dados por coisas intensas, a apreciação qualitativa de bens onerosos. Nos mercados mais maduros, os preços, os valores numéricos, o valor objetivado, a coisa quantitativa, vai sendo consolidada entre empresários e assalariados (modo de dizer geral, que inclui servidores autônomos, inclusive aquele motorista de Uber ou vendedor de cachorro quente na rua). Então a tal mão invisível de Adam Smith não é tão invisível assim, não tem magia alguma, é o maravilhoso resultado de ponderações intangíveis, da mente de todos, que impulsiona a ações resolutivas, firmes e constantes, de pôr a mão na massa e aceitar a onerosidade de bens escassos, o objeto mesmo da disciplina da economia. Com o suor de seu rosto, conforme o mandamento divino de sempre.
Agora, confrontemos essa perspectiva metodológica, da lógica da mera sobrevivência, com os demais valores do homem. O que está em jogo é o próprio conceito de bem. O que é isso, acaso se consuma na valoração de ouro, prata e moedas de troca? De forma alguma, o conceito de bem é metafísico. Não se aposta a felicidade em bens materiais, e sim na contemplação de uma bela obra mais concreta de uma tela de Rembrandt, na serenidade de um concerto mais abstrato de Bach ou na compreensão abstrato-concreta das três vias de salvação das almas, inferno, purgatório e paraíso, numa obra como a Divina Comédia!
O método de Mário Santos é isso, a arte da com-creção, do latim cum cretere, do construir com, da construção e concretização voluntária, onerosa, amorosa e relacional, portanto co-participativa.
Acaso o sucesso econômico e social das famílias está na riqueza de bens tangíveis, palpáveis, jamais, a vitória final, física e metafísica, está no Logos, no quid est ou na essência da Palavra. Aí, bem e bondade se confundem. Mário vai além, nos lembra a valoração dos logoi, em latim, o plural de logos, das palavras e conceitos universais, daquelas que transcendem a lógica da sobrevivência e, como diria o Olavo, contemplam o gênero do discurso mito-poético.
Bom, mas aí partimos para águas muito mais profundas. Deixem seu comentário. Conforme demanda, a demanda de seu valor de uso, não tanto de troca (por exemplo, de monetização no Youtube!), desenvolvo melhor o tema em pelo menos 2 ou 3 outros podcast.
Abraços!