No dia em que Aleksandr Solzhenitsyn foi preso, em 12 de fevereiro de 1974, ele divulgou o texto “Live Not by Lies” (“Não Viva de Mentiras”). No dia seguinte, foi exilado para o Ocidente, onde recebeu as boas-vindas de um herói.
Este momento marca o auge de sua fama. Solzhenitsyn equipara “mentiras” à ideologia, a ilusão de que a natureza humana e a sociedade podem ser remodeladas de acordo com especificações predeterminadas.
E sua última palavra, antes de deixar sua terra natal, incita os cidadãos soviéticos como indivíduos a se absterem de cooperar com as mentiras do regime. Mesmo os mais tímidos podem dar esse passo menos exigente em direção à independência espiritual. Se muitos marcharem juntos neste caminho de resistência passiva, todo o sistema desumano vacilará e entrará em colapso.
(Por Edward E. Ericson, Jr. e Daniel J. Mahoney, The Solzhenitsyn Reader – https://www.solzhenitsyncenter.org/the-solzhenitsyn-reader)
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Houve um tempo em que não ousávamos murmurar um sussurro.
Mas agora escrevemos e lemos samizdat[1] e, reunidos nas salas para fumantes dos institutos de pesquisa, nos queixamos calorosamente de tudo o que eles estão confundindo, de tudo para o que eles estão nos arrastando! Há aquela bravata desnecessária em torno de nossos empreendimentos no espaço, em contraste ao pano de fundo de ruína e pobreza em casa; e o apoio a regimes selvagens distantes; e o desencadeamento de guerras civis; e o culto imprudente a Mao Zedong (às nossas custas) – no final seremos os enviados contra ele, e teremos que ir, que outra opção haverá? E eles colocam quem eles querem em julgamento, e marcam os saudáveis como insanos – e são sempre “eles”, enquanto nós estamos – desamparados.
Estamos nos aproximando do limite; uma morte espiritual universal já está sobre nós; uma morte física está prestes a eclodir e engolir nós e nossos filhos, enquanto continuamos a sorrir timidamente e balbuciar: “Mas o que podemos fazer para impedir isso? Não temos força.”
Nós cedemos tão desesperançosamente nossa humanidade que, pelas modestas esmolas de hoje, estamos prontos a renunciar a todos os princípios, nossa alma, todos os trabalhos de nossos ancestrais, todas as perspectivas de nossos descendentes – qualquer coisa para evitar perturbar nossa frágil existência. Perdemos nossa força, nosso orgulho, nossa paixão. Não tememos nem uma morte nuclear comum, não tememos uma terceira guerra mundial (talvez nos escondamos em alguma fenda), mas tememos unicamente assumir uma postura cívica! Esperamos apenas não nos afastarmos do rebanho, não seguirmos sozinhos, e corrermos o risco de, de repente, ter que passar sem o pão branco, o aquecedor de água quente, uma autorização de residência em Moscou.
Nós internalizamos bem as lições que o Estado nos incutiu; estamos sempre contentes e confortáveis com sua premissa: não podemos fugir do ambiente, das condições sociais; eles nos moldam, “o ser determina a consciência”. O que temos de fazer? Não podemos fazer nada.
Mas podemos fazer — tudo! — mesmo se nos consolarmos e mentirmos para nós mesmos que não é assim. Não são “eles” que são culpados de tudo, mas nós mesmos, somente nós!
Alguns vão confrontar: Mas, na verdade, não há nada a ser feito! Nossas bocas estão amordaçadas, ninguém nos ouve, ninguém nos pergunta. Como podemos fazer com que eles nos ouçam?
Fazê-los reconsiderar — é impossível.
O natural seria simplesmente não os reeleger, mas não há reeleições em nosso país.
No Ocidente, eles têm greves, marchas de protesto, mas estamos muito amedrontados, muito assustados: Como é que alguém desiste do próprio emprego e sai para a rua?
Todos os outros meios fatídicos utilizados ao longo do último século da amarga história da Rússia são ainda menos adequados para nós hoje – é verdade, não vamos recorrer a eles! Hoje, quando todos os machados cortaram o que cortaram, quando tudo o que foi semeado deu frutos, podemos ver quão perdidos, quão drogados estavam aqueles jovens arrogantes que buscavam, através do terror, da revolta sangrenta e da guerra civil, fazer o país justo e feliz. Não, obrigado, pais do iluminismo! Sabemos agora que a vileza dos meios gera a vileza do resultado. Que nossas mãos fiquem limpas!
Então o círculo fechou? Então, de fato, não há saída? Então, a única coisa que resta a fazer é esperar inerte: E se algo simplesmente acontecer por si só? Mas isso nunca se dará por si só, se todos nós, todos os dias, continuarmos a reconhecer, glorificar e fortalecer essa causa, se não recuarmos, pelo menos, de seu ponto mais vulnerável… Das mentiras.
Quando a violência irrompe sobre a pacífica condição humana, seu rosto está corado de autoconfiança, exibe em sua bandeira e proclama: “Eu sou a violência! Abram caminho, afastem-se, eu vou esmagá-los!” Mas a violência envelhece rapidamente, alguns anos se passam – e ela não é mais segura de si mesma. Para se sustentar, para parecer decente, sem falta invocará suas aliadas: as Mentiras. Pois a violência não tem nada com que se cobrir a não ser com mentiras, e as mentiras só podem persistir através da violência. E não é todos os dias e nem em todos os ombros que a violência traz sua mão pesada: Ela exige de nós apenas uma submissão às mentiras, uma participação diária no engano – e isso basta como nossa fidelidade.
E aí encontramos, negligenciada por nós, a chave mais simples, mais acessível para nossa libertação: uma não participação pessoal em mentiras! Mesmo que tudo esteja coberto de mentiras, mesmo que tudo esteja sob domínio delas, vamos resistir da maneira mais curta: Que o domínio delas não se dê por meio de mim!
E esta é a maneira de sair do cerco imaginário da nossa inércia, a maneira mais fácil para nós e a mais devastadora para as mentiras. Pois quando as pessoas renunciam às mentiras, as mentiras simplesmente deixam de existir. Como parasitas, elas só podem sobreviver quando ligadas a uma pessoa.
Não somos chamados a sair na praça e gritar a verdade, dizer em voz alta o que pensamos – isso é assustador, não estamos prontos. Mas recusemos, ao menos, dizer o que não pensamos!
Este é o caminho, então, o mais fácil e acessível para nós, dada a nossa profunda covardia orgânica, muito mais fácil do que (é assustador até pronunciar as palavras) a desobediência civil à la Gandhi.
Nosso caminho deve ser: nunca apoiar mentiras conscientemente! Tendo entendido onde as mentiras começam (e muitos vêem essa linha de maneiras diferentes) – afaste-se dessa fronteira gangrenosa! Não colemos as escamas lascadas da Ideologia, não juntemos seus ossos em ruínas, nem remendemos seus trajes em decomposição, e ficaremos surpresos como rápido e impotentemente as mentiras cairão, e o que está destinado a ficar nu será exposto como tal ao mundo.
E assim, superando a nossa temeridade, que cada um escolha: Será ele um servo astuto das mentiras (desnecessário dizer, não por predisposição natural, mas para sustentar a família, criar os filhos no espírito de mentiras!), ou chegou a hora de ele se endireitar como um homem honesto, digno do respeito de seus filhos e contemporâneos? E a partir desse dia ele:
– Não escreverá, assinará, nem publicará de forma alguma, uma única linha distorcendo, até onde ele possa ver, a verdade;
– Não proferirá tal linha em conversa privada ou pública, nem a lerá de uma folha anotada, nem a falará no papel de educador, cabo eleitoral, professor, ator;
– Não irá por meio da pintura, escultura, fotografia, tecnologia ou música retratar, apoiar ou difundir um único pensamento falso, uma única distorção da verdade como ele a discerne;
– Não citará por escrito ou oralmente uma única menção “orientadora” para gratificação, segurança, para seu sucesso no trabalho, a menos que compartilhe plenamente o pensamento citado e acredite que tal pensamento se encaixe precisamente no contexto;
– Não será forçado a uma manifestação ou a um comício se isso for contrário ao seu desejo e à sua vontade; não adotará e levantará uma bandeira ou slogan em que não acredita plenamente;
– Não levantará a mão para votar uma proposta que não apóia sinceramente; não votará abertamente ou em escrutínio secreto em um candidato que julgue duvidoso ou indigno;
– Não será impelido a uma reunião onde se espera que ocorra uma discussão forçada e distorcida;
– Sairá imediatamente de uma sessão, reunião, palestra, peça ou filme assim que ouvir o orador proferir uma mentira, baboseira ideológica ou propaganda descarada;
– Não assinará, nem comprará no varejo, um jornal ou revista que distorça ou oculte os fatos subjacentes.
Esta não é de forma alguma uma lista exaustiva das formas possíveis e necessárias de fugir às mentiras. Mas aquele que começa a se purificar irá, com uma visão depurada, facilmente já discernir outras oportunidades.
Sim, a princípio não será justo. Alguém terá que temporariamente perder o emprego. Para os jovens que procuram viver pela verdade, isso a princípio complicará severamente a vida, pois seus testes e questionários também estão cheios de mentiras e, portanto, escolhas terão de ser feitas. Mas não há brecha para quem procura ser honesto: nem por um dia, nem mesmo nas ocupações técnicas mais seguras, pode ele ainda evitar uma única das escolhas listadas – ser feita em favor da verdade ou da mentira, em favor da independência ou do servilismo espirituais. E quanto àquele que não tem coragem para defender nem a própria alma: que não se gabe de suas visões progressistas, não se gabe de seu status de acadêmico ou de artista reconhecido, cidadão distinto ou general. Que ele diga a si mesmo claramente: sou gado, sou um covarde, procuro apenas calor e me alimentar.
Para nós, que nos tornamos mais tranquilos ao longo do tempo, mesmo esse caminho mais moderado de resistência não será fácil de trilhar. Mas veja como é muito mais fácil do que a autoimolação ou até mesmo uma greve de fome: as chamas não engolirão seu corpo, seus olhos não saltarão do calor e sua família sempre terá, pelo menos, um pedaço de pão preto para umedecer com um copo de água limpa.
Traído e enganado por nós, um grande povo europeu – os tchecoslovacos – não nos mostrou como se pode enfrentar os tanques sozinho com o peito nu, contanto que dentro dele bata um coração digno?
Não será um caminho fácil, talvez, mas é o mais fácil entre os que estão diante de nós. Não é uma escolha fácil para o corpo, mas a única para a alma. Não, não é um caminho fácil, mas já temos entre nós pessoas, dezenas mesmo, que tem por anos perseverado em todas essas regras, que vivem pela verdade.
E assim: Não precisamos ser os primeiros a trilhar este caminho, a nós cabe apenas aderir! Quanto mais de nós seguirmos juntos, quanto mais espessas forem as nossas fileiras, mais fácil e mais curto será este caminho para todos nós! Se nos tornarmos milhares – eles não vão aguentar, não poderão nos tocar. Se crescermos para dezenas de milhares – não reconheceremos nosso país!
Mas se recuarmos, então deixemos de reclamar que alguém não nos deixa respirar – fazemos isso a nós mesmos! Vamos então nos encolher e agachar, enquanto nossos camaradas biólogos aproximam o dia em que nossos pensamentos poderão ser lidos e nossos genes alterados.
E se disso também nos afastarmos, então somos inúteis, sem esperança, e é de nós que Pushkin pergunta com desprezo:
Por que oferecer aos rebanhos sua libertação?
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Sua herança a cada geração
O jugo com tinidos, e o açoite.
12 de fevereiro de 1974
Traduzido por Denilson Cândido (denilson.dr.candido@gmail.com) e revisado por Mário Freire (mariojorgefreire5@gmail.com), a partir da tradução definitiva para o inglês efetuada por Yermolai Solzhenitsyn (© 2006 English-language copyright Yermolai Solzhenitsyn – https://www.solzhenitsyncenter.org/live-not-by-lies).
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Texto “Live Not by Lies” em russo:
[1] “samizdat” – publicações de conteúdo crítico ao regime de governo da União Soviética Socialista, durante a segunda metade do século XX, reproduzidas por meios que não permitissem a localização dos autores, colaboradores e leitores da elite russa, tais como cópias à mão, papel carbono, por prensas ou máquinas de escrever vindas de outros países, pois as impressões por máquinas de escrever russas poderiam ser identificadas e rastreadas pelas autoridades do governo (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Samizdat).