I
Perfil do autor
1. Somos solidários com o passado de ordem intelectual, entre tantas outras formas de entendimento ao nosso alcance. Se não nos esquecermos que somos animais políticos em razão de nossa diferença específica em si, não nos surpreenderemos tanto de ver o quanto pensamos historicamente, o quanto ainda somos tradicionais, mesmo quando temos a pretensão de a tudo renovar. É necessário olhar demasiado longe o passado para entendermos as raízes e as virtudes primeiras, a motivação germinativa dos ideias que governam o mundo de hoje. É ali que se encontra o que mais nos interessa, onde podemos captar uma idéia que sai do chão, quando intenções e significados de futuro são meramente inflados, e por onde podemos compreender melhor os significados autênticos.
No entanto, sem a pretensão de ser um estudo a mais a recontar a história. Eu vou questionar informações históricas a serem descritas, em certos tipos representativos, de acordo com princípios espirituais que nos pareçam de maior relevância.
Três homens, de formas muito diferentes, dominam o mundo moderno, e comandam todos os problemas que o atormentam, seja como reformador religioso, reformador da filosofia ou dos reformistas da moralidade. Respectivamente são Lutero, Descartes e Rousseau, verdadeiramente os pais daquilo a que o Sr. Gabriel Séailles chamou de consciência moderna. Nem chego a falar de Kant, que está na confluência das correntes espirituais destes três homens, e que criou, se assim podemos dizer, uma verdadeira armadura escolástica de formação do pensamento moderno.
Considerarei Lutero, não para estudá-lo de forma completa ou como fundador do protestantismo, mas para que possamos nos libertar da fisionomia de certa perspectiva inimiga da filosofia, ao menos quanto aos traços que nos interessam nos conflitos filosóficos. É de nos surpreender que o extraordinário desequilíbrio introduzido pelas heresias não tenha sido suficientemente relevado em todas as áreas — e especialmente no domínio da razão especulativa e prática da consciência cristã; dada a importância de todas as repercussões disso na história. A revolução luterana, na medida que se fez portador de toda uma perspectiva religiosa, pela maneira com que domina toda a atividade do homem, doravante deve mudar de forma profunda e radical a atitude da alma humana, afetando até o pensamento especulativo perante a realidade.
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(Ou) do horizonte de alcance de intenção e propósitos relevantes ao entendimento da pessoa humana (ver prefácio).
II
Um drama espiritual
3. Evocador veemente das grandes forças de onda que estavam dormentes no coração das criaturas, Martinho Lutero foi dotado de uma natureza realista e lírica e, ao mesmo tempo, poderosa, impulsiva, corajosa e dolorosa, sentimental e impressionavelmente doentia. Este homem violento tinha muita bondade, generosidade, ternura. Com isso transmitia um orgulho inusitado e uma vaidade petulante, restando ser sua razão uma parte um tanto quanto deficiente.
Se inteligência significa a capacidade de entender para discernir a essência das coisas, para seguir obedientemente os desvios e as sutilezas do real, ele não era bem inteligente, e sim de mentalidade estreita — acima de tudo um obstinado. Mas ele tinha, até certo ponto, incrível inteligência do particular e do prático, uma engenhosidade astuta e perene, a capacidade de perceber o mal nos outros, a arte de encontrar mil expedientes para escapar de constrangimentos, ou de sobrecarregar o adversário; em suma, todos os recursos a que os filósofos chamam de saber cogitar em certa “razão particularizada”.
Ao entrar na religião, se creditava como o resultado de uma impressão de terror, causado primeiro pela morte de um amigo morto em duelo, em seguida, por conta de uma tempestade violenta, em que quase teria perecido, viu-se “não como um ponto de atração, como o de ter sido levado embora”, non tam tractus quam raptus, parece ter sido, nos primeiros dias de sua vida religiosa, algo de regular e talvez mesmo fervorosa , mas uma vida tomada de preocupações e conturbações . Cada vez que o nível geral da vida clerical na Alemanha ia caindo miseravelmente baixo, ele se declarava pender para a corrente da reforma, e, como ele diz, não deixaria que as teias de aranha crescessem em seu focinho enquanto houvesse invasão de abusos por toda parte. Aos 25 anos, ele era professor na Universidade de Wittenberg; aos 29 anos, doutor em teologia sagrada; e o dever de ensinar, dado imprudentemente a um homem tão inquieto, jogou-o de uma só vez na árida atmosfera da controvérsia humana e transformou seu zelo em arrogância e presunção . Da escolástica estudada imperfeitamente e às pressas, nada tirou proveito, mas de um arsenal de ideias falsas e de noções teológicas vagas, adquiriu uma desconcertante habilidade de argumentar capciosamente.
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³ “Eu era um monge piedoso, ligado à minha Ordem, tanto que ouso dizer: Se alguma vez um monge entrou no céu através da sua, eu também posso entrar. Erl., 31.273.
Sem mencionar as influências espirituais que podem enfurecer este estado de angústia, parece difícil descartar aqui a hipótese de uma desordem neuropática. Cochlaeus conta que um dia, na missa, enquanto o padre lia sobre o mudo demoníaco do evangelho, um Lutero tomado de terror exclamou de repente: Há! Não sou eu! Não sou eu! Então precipitou-se do topo do púlpito da igreja e, caído, foi tomado como que por uma (inusitada) paixão violenta e amorosa. (Félix KUHN, Lutero, sua vida e seu trabalho, t., I, 55.)