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TIVE A SORTE de poder dedicar um ano inteiro em minha tese de mestrado sobre a ecofisiologia da cultura do maracujá, contando com todo apoio da Embrapa Cerrados (CPAC). Entre outros, experts em estatística e pelo uso de sistema sofisticadíssimo de análise de dados, o AGROSTAT. Um dos conceitos estatísticos que mais me intrigou na disciplina dada pela Universidade de Lavras (UFLA) foi o de homocedasticidade e, salvo engano, foi em torno dele que o meu orientador estatístico levantou alguns obséquios de minha análise experimental, envolvendo dados meteorológicos e fisiológicos da planta. Um dia, já próximo de minha defesa, me assustei com o relatório de revisão dos últimos dados computados. Fiquei apavorado, às 8 h da noite saí de casa para o CPAC, distante nada menos que cerca de 60 km. Depois de suar para justificar entrada para os seguranças da Unidade, entrei noite adentro consultando o tal AGROSTAT. Que sufoco. Já não me lembro qual foi a motivação desse “surto”, nem se ajudou muito ir lá. Hoje, num olhar mais filosófico, até me congratulo do feito, o artigo resultante foi aceito por nada menos que a prestigiosa revista PAB (Pesquisa Agropecuária) e me ofereceram até U$ 200,00 para publicar algo mais sobre o assunto.
Digo olhar filosófico porque me parece que a tal homocedasticidade diz respeito ao sentido de legitima minimização de “erros” dados como “resíduo” de um experimento feito a campo aberto, sentido que denota maiores conhecimentos dos termos epistêmicos de causalidade e contingência. Uma definição sucinta seria:
Homocedasticidade – análise de variabilidade de dados experimentais em que o termo de erro (ou seja, o “ruído” ou perturbação aleatória na relação entre as variáveis independentes e a variável dependente) é o mesmo em todos os valores das variáveis independentes [conhecidas].
Ora, um bom experimento depende do escopo de investigação e de sua reprodutibilidade em situações similares. Minha tese na verdade continha dois escopos distintos, um de campo, outro de laboratório, que com o tempo foi sendo direcionado para este, a saber, avaliação de propriedades físico-química dos frutos. Meu orientador, creiam, é um dos mais notáveis brasileiros pesquisadores na área de fruticultura, mas acho que subestimou o tempo que eu dispunha na amplidão de escopo do projeto de pesquisa teórica e prática. Descobrir relações de dependência entre um fator dependente, digamos, luminosidade, e outro mais independente, a concentração de sólidos solúveis da fruta, é algo até já bem consolidado na bibliografia científica, estruturada em condições de medição muito mais elaboradas do que as que dispunha. O que podia fazer, e acho que fiz o melhor que pude, foi analisar descritivamente a fenologia botânica e fisiológica da planta (dos botões florais à maturidade do fruto) e comparar as propriedades qualitativas de duas épocas de florescimento em duas espécies diferentes de maracujá.
Tomo isso como lição de filosofia das ciências porque, se cabe ao estatístico buscar a homogeneidade dos valores das variáveis independentes para que se possa atestar com bom intervalo de confiança para determinada hipótese H0 (como influência das chuvas e da polinização artificial no vingamento de flores), cabe ao investigador delimitar escopos mais descritivos, de heterogeneidade ambiental — que incorporam algo do “resíduo” estatístico, dos escopos de relações causais mais diretas. A natural ansiedade por encontrar relações de causalidade necessária pode prejudicar os contextos de diagnóstico que podem suscitar pesquisas ulteriores mais avançadas. O sonho de quase zerar resíduos nas ciências analíticas com graus de significância de 99,999… % é uma utopia. (não à toa que na história da ciência estatística os seus maiores insights vieram da dura experimentação agrícola, a céu aberto)
Por exemplo, a polinização artificial (com uso de dedos nus ou cotonetes) é uma boa prática agrícola amplamente reconhecida pela agricultura e muito “indiretamente” vai contribuir para a neutralidade de carbono no meio ambiente. Entre outros, pelo aumento da produtividade. Mas a UE insiste que os países produtores demonstrem relações de causa e efeito de incontáveis arranjos de sistemas produtivos adotados com o acúmulo de C no complexo sistema terra-planta-atmosfera! Garanto que não tem estatístico no mundo que consiga subsidiar um programa de tal amplitude com mínimo de grau de significância aceitáveis. Na prática o cultivo de grandes commodities, de maior poder econômico, terão dados mais “robustos” e poderão convencê-los com experimentos muito direcionados a medições quantitativas de C, CO2, NH4 etc, e pouco a dizer sobre a integração de arranjos produtivos envolvendo a tecnologia, a experiência de cultivo mais adaptada às condições locais e até a composição visual da sua paisagem (ver notas a seguir).
Dados cinco condicionantes tecnológicos em cinco grupos de culturas num experimento de 25 megaparcelas amostrais (digamos 1000 ha) que envolvesse cinco biomas do imenso fazendão chamado Brasil, qual seria a disposição espacial estatística ideal num delineamento experimental? Denominando cada grupo de A, B, C, D e E, buscaríamos uma disposição semelhante à da figura (Memória, 2004 – Breve História da Estatística):
Observe que A se repete em todas as linhas, mas em nenhum momento recebem influências das parcelas adjacentes (não seguem alinhamentos na vertical ou diagonal). Idem os demais, garantindo distribuição heterogênea. Suponhamos agora, que os grupos sejam ordenados pelo uso de BPAs, das práticas mais mecanizadas às mais manuais ou artesanal, teríamos: A – florestal (a mais mecanizada), B – pastagens, C – grandes culturas, D – fruticultura e E – horticultura (a mais artesanal).
Considerando o tripé da sustentabilidade, que tipos de arranjos seriam mais apropriados para a gestão ambiental, as tendências de mercado e a disponibilidade de mão de obra num país continental?
Nesse exercício mental podemos imaginar a combinação ideal de boas práticas agrícolas – BPA, numa distribuição algo aleatória, algo intencional, em que todas as combinações de sistema de produção estejam presentes em cada bioma — cada classe de cultivo mais especializado do mercado de commodities convivendo de forma autônoma e independente com os nichos de mercado de alimentos perecíveis. Boas práticas de semeadura aérea de florestas quinquenárias e plantio direto mecanizado, via herbicidas, na soja anual; convivendo com polinização manual de flores, em ramos de maracujá bianual suspensos numa cerca de arame liso; e poda artesanal em parreiras de uvas serranas e sertanejas decenárias.
Um arranjo que faça confluir e antagonizar os elementos de secura e umidade, de quentura e frieza da natureza, imaginada nas artes de multiplicação e de divisão (espacial e temporal) simbolizado pelo quadrivium medieval.
Pois bem, não é que o Brasil, em sua imensa heterogeneidade, atenderia boa parte dos requisitos de sustentabilidade e biodiversidade aspirados pelos europeus? Pelo menos bem mais que qualquer outro país de agricultura expressiva! Tanto que, com apenas 17% de área cultivada, conseguimos atender mais de 20% da demanda mundial de madeira e alimentos.
O que garante certa homogeneidade produtiva na heterogeneidade tropical?
É o que nós agrônomos chamamos de princípios da homeostase e da resiliência: terras relativamente homogêneas e rústicas como dos cerrados num clima menos instável que os demais países e a oferta abundante e constante de luz para a fotossíntese das culturas tropicais e robustas — adornada por diferenciais de altitude para culturas temperadas e mais sensíveis. Assim como a ecofisiologia natural dos biomas Cerrado e Caatinga, mais secos, convivem com microclimas de vales, chapadas e serras, nas matas mais úmidas de galerias, várzeas e cordilheiras (1). Se A, B, C , D e E forem representados por ativos mais afetos ao quadrivium, como Terra, Radiação solar, Evaporotranspiração, Genética e Tecnologia, teremos que a luminosidade extra segue aliada à maior eficiência pedológica, genética, botânica, tecnológica e fotossintética. Isso já pode nos garantir maior massa vegetativa natural e cultivada; e efetivamente temos a maior, por metro quadrado, do Planeta.
O equilíbrio homeostático é dinâmico, mas as oscilações naturais de fogo, terra, água e ar, simbolizado pelo quadrivium escolástico (2) e ensinado por moderna ciência dos ecossistemas, mantêm-se funcionais, direcionando as potencialidades de cada sistema produtivo, “autônomo”, para a maior produtividade dos solos, da água e dos recursos ambientais. A sustentabilidade socioeconômica assegurada pelos mecanismos de regulação de oferta e demanda — de divisão e multiplicação de custos e receitas —, auferida pelos preços do mercado livre e espontâneo.
Uma autonomia relativa, mas de “arranjo” autóctone, pela otimização do uso de insumos externos à atividade primária da agricultura, como a mineração e a indústria de fertilizantes. Tudo garantido pelo inteligente uso de bens humanos e tecnológicos em A, B, C, D e E.
É a divisão de trabalho e a economia de escala desse imenso fazendão chamado Brasil!
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(1) Recortando apenas uma reta imaginária de 700 km no estado de MG, entre a chapada de Diamantina e a Serra de Mantiqueira, temos todas essas configurações naturais presentes, acrescidas de belíssimas áreas de transição. Interessante imaginar-se ainda recortes entre Oeste da Bahia e Sul do Piauí, entre o Noroeste do MT e o Norte de Rondônia, entre o vale do Itajaí e o altiplano Oeste de SC, e tantos outros quanto um experimentado viajante possa contemplar! Outras retas, bem mais curtas, já nos revelariam dezenas de sistemas agropecuários e agroindustriais, “artificiais” e inusitados, recortados por uma enorme malha rodoviária, como entre Piracicaba e Jundiaí, em SP, ou Maringá e Paranavaí, no PR…
(2) Segundo Raimundo Lúllio, um maiorquino erudito do séc. XIII, os quatro elementos e os quatro estados naturais citados se conjugam por antagonismos e sinergismos dois a dois. Dessas articulações poder-se-ia chegar as quatro artes da matemática do quadrivium escolástico: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Da música, por exemplo, se estabelece a arte da divisão de tons e vibrações num jogo harmônico de ritmos, que simboliza algo da harmonia de uso de matérias primas com a arte poiética (fabril), a arte de uso arquitetônico de artefatos belos e úteis, em suas partes divisíveis. Da beleza dos astros à noite, e do Sol nascente ou poente de dia, extraímos o panorama de partes em todos indivisíveis, em harmonias cíclicas. Na agricultura, mapas planialtimétricos, hidrológicos, de relevo, vegetação e solos permitem avaliar em seu todo a desarmonia ou harmonia de sua paisagem e, pela sua menor ou maior beleza, uma fotografia qualitativa do estado de questão de sustentabilidade de uma propriedade agrícola ou de uma mais ampla microbacia hidrográfica.